Rever “Depoimento”, de José Marmelo e Silva |
O problema da diferença – no estatuto social, no género, na idade, na atitude ideológica – é uma singular linha de aproximação a José Marmelo e Silva, coetâneo de sobressaltos políticos decisivos para o século, de estéticas e filosofias que incorporou, sem nelas ter embandeirado, quando antecipou os ditos surrealismo com palores abjeccionistas, neo-realismo e existencialismo portugueses. Outros distintivos, desde “O homem que abjurou a sociedade”, limiar de O Homem Que Abjurou a Sociedade. Crónicas do Amor e do Tempo (Mortecor do Painel Beirense), com que abre a Obra Completa de José Marmelo e Silva: Não Aceitei a Ortodoxia, são igualmente fecundas, desde logo, na marcação de um território, sua especificidade vocabular e quadros de desigualdade. O que chama a atenção, porém, é um exercício de relação – no amor, onde não há impossíveis, e na fecunda perspectiva oficinal, de que o autor é, entre nós, exemplo supremo.
Nota-se, por um lado, educação literária por imagens – da prosopopeia à metáfora, do símbolo a sinestésicas «sombras de veludo» (p. 21) –, até à ambiguidade, que uma «cultura amordaçada, uivos de lobos...» remotivaram, enquanto «a única possibilidade de expressar a alienação a que nos forçavam», escreve no “Prefácio” a Políbio Gomes dos Santos, Poemas, bem como um toque finissecular nas rimas internas por contiguidade ou proximidade, e, claro, fragor de provincianismos, numa época (1932) em que Aquilino Ribeiro já se canonizava. A imagética é soberba: do comboio, qual «serpente gigantesca» de «ondeada cabeleira» (p. 22), aos movimentos do «barco social» (p. 24), debate-se o «sol alto das ilusões», segundo processo que tardaria no surrealismo português – o do «tropel fantasmagórico» (p. 22), no recurso ao delírio, àquele «bailar diabólico» entrevisto no Herculano de “A Dama pé de cabra”, ao caótico de «crianças inteiras, pedaços de homens trucidados, [que] ficaram sepultos nos escombros», de “Sonho na madrugada”, «visão simbólica» (p. 38) de Portugal dominado por lobos. Este, mais do que premonição, aviso político caiu em saco roto, mesmo no ensaísmo neo-realista, sendo ele, subtilmente, «um dos escritores históricos do movimento». |
Mas o dicionário impõe-se, e exigiria colecta geral, de modo a percebermos a riqueza vocabular e locucional desde a estreia, já libérrima nas formas aglutinantes e de visos fonéticos, que encontraremos em Jorge de Sena, Nuno Bragança e [António] Silva Carvalho. Desvios inesperados («de lado a lés»), compositivos («sornar-se», p. 25) e acenos de gíria tornar-se-ão maneira, ainda rara, ao tempo, que, para o baixo falar militar, tira de Marmelo e Silva os seus pergaminhos. O mesmo para a intrusão do folclore, sobretudo, cancioneiral. A questão do nome, quando próprio, cria outra diferença: vai do geral – Dr. Abranches – ao particular – Artur Abranches – e, para marcar os antípodas, arrasa com o «enobrecente», oposto à «gentiaga» (p. 24), Abranches de Lima. O insólito casa-se no ludismo com valores religiosos (isso é diverso da afirmada negação: “A virgem que não esmagou a serpente”, p. 43) – em que é pioneiro: «– Avé, Marília, cheia de graça...» –, já contrapostos ao seminário, «perdido na noite», que o faz «céptico e descrente» na adolescência, em “Crenças malditas”. Os «choupos que ensombravam a solidão» (p. 31) antecipam o Convento mafrense de “Depoimento” (1939). A consciência do risco na expressividade pode também ser por saturação: é o caso de, nessa página, parágrafo |
Coordenação e prefácio de Maria de Fátima Marinho, Porto, Campo das Letras, 2002. Cabem os seis «estudos introdutórios» a Arnaldo Saraiva, Celina Silva, Maria Alzira Seixo, Maria Manuela Morais Silva, Pedro Eiras, Rosa Maria Martelo. No final, Maria Manuela Morais Silva assina “Cronologia Biográfica”. Encerra “Bibliografia”, incluindo, na passiva, entrevistas e dossiês. Esta é algo incompleta; ou distraída: na p. 765, o artigo de António Guerreiro é dito de 1989, quando devia ser 26-VIII-1989; Álvaro Salema recenseia Sedução no Diário de Lisboa, 12-V-1960; convém somar um Diário de Notícias de 17-V-1954. Serafim Ferreira dera “Três cartas de José Marmelo e Silva” em O Escritor, 7, Março de 1996, Lisboa, p. 11-14). Acrescem dois verbetes: um, por Arnaldo Saraiva, no vol. 3 de Actualização do Dicionário de Literatura, dir. de Jacinto do Prado Coelho, Porto, Figueirinhas, 2003, p. 724-725; outro, por Ernesto Rodrigues, na Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, 5, Lisboa, Editorial Verbo, 2005, cols. 42-43. |
Porto, Limiar, 1981, p. 33. Este prefácio, p. 15-36, é bibliografia activa ausente em 2002. |
Novo Cancioneiro, Prefácio, Organização e Notas de Alexandre Pinheiro Torres, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 14. Espanta, por conseguinte, a mera citação sem consequências de «Arqueologia de uma problemática» – que o não é –, em subtítulo a Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português, de António Pedro Pita, Porto, Campo das Letras, 2002.
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Coordenação e prefácio de Maria de Fátima Marinho, Porto, Campo das Letras, 2002. Cabem os seis «estudos introdutórios» a Arnaldo Saraiva, Celina Silva, Maria Alzira Seixo, Maria Manuela Morais Silva, Pedro Eiras, Rosa Maria Martelo. No final, Maria Manuela Morais Silva assina “Cronologia Biográfica”. Encerra “Bibliografia”, incluindo, na passiva, entrevistas e dossiês. Esta é algo incompleta; ou distraída: na p. 765, o artigo de António Guerreiro é dito de 1989, quando devia ser 26-VIII-1989; Álvaro Salema recenseia Sedução no Diário de Lisboa, 12-V-1960; convém somar um Diário de Notícias de 17-V-1954. Serafim Ferreira dera “Três cartas de José Marmelo e Silva” em O Escritor, 7, Março de 1996, Lisboa, p. 11-14). Acrescem dois verbetes: um, por Arnaldo Saraiva, no vol. 3 de Actualização do Dicionário de Literatura, dir. de Jacinto do Prado Coelho, Porto, Figueirinhas, 2003, p. 724-725; outro, por Ernesto Rodrigues, na Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, 5, Lisboa, Editorial Verbo, 2005, cols. 42-43.
Porto, Limiar, 1981, p. 33. Este prefácio, p. 15-36, é bibliografia activa ausente em 2002.
Novo Cancioneiro, Prefácio, Organização e Notas de Alexandre Pinheiro Torres, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 14. Espanta, por conseguinte, a mera citação sem consequências de «Arqueologia de uma problemática» – que o não é –, em subtítulo a Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português, de António Pedro Pita, Porto, Campo das Letras, 2002. |
com cinco advérbios de modo. Devemos, contudo, se um autor abjura do seu texto, reeditá-lo? Sim, se o editou, aceitando a última demão; não, se, em consciência, não o quis editar, como em exemplos queirosianos. É o que permite servir-me dos vários estádios de “Depoimento”, a abordar do ponto de vista da materialização escrita.
Esta, sabe-se, afecta quase toda a sua obra, particularmente, Sedução (1937), cujos itálicos finais e Posfácio lembram estratégia de 1939; mexera com o título, mesmo, de Adolescente (1948), ou «a violência de cinco anos de internato de seminaristas» (p. 18), na confissão prefacial a Políbio Gomes dos Santos. Sendo esta novelística a mais trabalhada, limitar-me-ei a duas notas.
Além, a «senhora do maior respeito e distinção» poderia acometer tudo, mesmo sendo irmã do narrador; ora, crime maior, e que arrasa o cânone, é que Maria Noémia é «horrivelmente feia» (p. 79). Houvera algumas assim, divertidamente camilianas, sem esta importância narrativa. As atléticas tenistas ou a «iodada» (1965, p. 89) Binita excitam a voz de “Depoimento”. Ora, aquele desaforo cinde tradição. A coragem dos escritores dava um bom assunto de tese. Estranha e simultaneamente, em ignorância recíproca, o poeta, ficcionista e ensaísta húngaro Kosztolányi Dezső edita Pacsirta (1924) – Cotovia , na tradução portuguesa por que me responsabilizei –, em que, na primeira semana de ausência de filha solteirona, e após noite de copos, um pai alivia a alma contra esposa escandalizada, ao assumir que a filha é feiíssima.
A segunda nota, em relação a Adolescente Agrilhoado (1958) , visa alertar para uso de anos 50 – característico no primeiro Augusto Abelaira – e já de 30, em Marmelo e Silva, – no tocante às falas sem verbos declarativos. O que de teatro irrompe aqui completa-se em infindáveis notações cénicas parentéticas e texto cursivo de O Ser e o Ter (1968, O Ser e o Ter: seguido de Anquilose; autónomo, 1973) , fundado no registo provincial. Já agora, em escrita de diferenças (como citar Hitler), veja-se, em 1958, a inscrição social distintiva nas formas de tratamento entre ‘vós’ e ‘vocês’.
A condição escrava militar retorna em Anquilose (autónomo, 1971) e no incompleto “O Cabo Elísio”. O final sensível de coração reencontrado, além, não é novidade. O peso do n enclítico, também não. A par da linguagem da guerra e do amor, sobressai a dos homens da Ria de Aveiro, onde decorre a acção, que mais parece existir nos reenvios textuais, em que se enquadra, filmicamente, o revisto “Depoimento”. O factual – nos preços dos apetrechos, por exemplo (p. 513) – está em 1939, no que se ganha por mês ou Juja deixa em sobrescrito, mas torna-se incerto na refundição, que, todavia, precisa a massa do Convento: «Quatro mil e quinhentas portas e janelas. Oitocentas e oitenta salas.» (1965, p. 55) |
Já Elísio «era efectivamente um cão» (p. 734). Surpresa. A sua humanização coexiste com uma história de Remorso (e Fatalidade, Inveja, Egoísmo). Deve aproximar-se, no interesse, também não muito vulgar em continentais, pela cenário madeirense, ainda em Desnudez Uivante (1983), onde melhor se perfilam calão e violência, entre fios soltos autoficcionais. Este aspecto biográfico obrigaria a reunir cartas-epígrafes, rodapés informativos, disfarces que a rescrita não apaga, respostas a entrevistas, Memoriais inéditos. O metatextual é outra frente, dado em longo parêntesis de “O Cabo Elísio”, ao justificar como «a mobilização me contrariava, em parte irremediavelmente, todos os planos de vida particular». Especificando: «(estudo profissional, estágio no Liceu, talvez mesmo o casamento, e porque não confessá-lo? eu andava cheio de ideias literárias generosas a respeito da marcha ascendente do Homem, conforme, por esse tempo, deixei transparecer nas palavras dum 1.º volume de ficção, incipiente – o Sonho e a Aventura. Sonho enquanto ansiedade de infinito; Aventura, enquanto realização ousada. A Humanidade formava um todo consciente universal, possuía um espírito comum e o homem só era poderoso e perpétuo através do encadeamento das gerações. Génio que houvesse, mas individual e sem continuidade, perdia-se nos tempos como inútil. Portanto, toda a |
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006.
Mais recente, Ivone Bastos Ferreira, “Adolescente Agrilhoado, de José Marmelo e Silva”, in António Manuel Ferreira, coord., Sob o Olhar de Minerva – A Escola e o Ensino na Literatura, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2004, p. 135-138. Carina Infante do Carmo, Adolescer em Clausura. Olhares de Aquilino, Régio e Vergílio Ferreira sobre o Romance de Internato, Faro / Viseu, Univ. do Algarve / CEAR, 1987, mal aborda «o heterodoxo Marmelo e Silva» (p. 51), um dos que, nesse título, «não enjeitam o ascendente psicologista e [...] o próprio legado presencista» (p. 50). Na reedição de 1987, ver um também ausente da bibliografia passiva Rodrigues da Silva, “Marmelo e Silva agrilhoado”, Diário Popular, Lisboa, 28-V-1987. |
possibilidade de remissão do nosso condicionalismo terreno não poderia jamais esperar-se a não ser duma realidade humana cooperante).» (p. 734)
“Narrativa bárbara”, que abre O Sonho e a Aventura, tem um tudo nada de “Abyssus abyssum” trindadiano e muito de vingança final, no guião de jovem que se livra da tropa, com essoutro jovem mobilizado em 1939, no conto “Ladrão!”, em variações lisboetas que poderiam ser expansões do central “Depoimento”, dada a presença de Madame Scoto, Maria de Jesus antes reduzida a Juja, a cujos passos na inesperada visita nocturna a Mafra se não deu continuação. Entre a primeira e terceira narrativas, coligadas a 1932, corre o Rio Zêzere, presença forte no enquadramento emotivo desta ficção. |
A instituição militar, sequer em curtas pinceladas, mais do que suficientes (e involuntário aceno ao Convento saramaguiano), afirma-se, já, em “Depoimento”, título que secundariza a história, revestindo o discurso de verdade. Será o mais editado de Marmelo e Silva, autonomizando-se em 2000. Vejamos esse percurso.
Datado de «Espinho, Março de 1939», “Depoïmento” é lançado na presença / revista de arte e crítica, 1, Ano XII, Série II, Nov. 1939, p. 25-42. Há edição fac-similada (s. l., 2003), com introdução de José Viale Moutinho, “Memória e desafio”, de que interessam três parágrafos com excertos de cartas de José Régio, que reproduzimos integralmente. A primeira tem carimbo de 12 de Fevereiro de 1839, embora por Régio datada de 13: refere Sedução, sobre que promete nota crítica, e convida Marmelo e Silva a remeter inédito para a refundida Presença. A segunda, sem data, que nota marginal de M. S. situa em 5 de Março, dá dez dias para a recepção do trecho. Na terceira e longa carta de 20 de Março , Régio agradece a novela, «que li dum fôlego». Desejaria dividi-la por dois números e, receando a Censura, tem «um grande mêdo de algumas expressões que vêm na sua novela: cagote, coirão, tive esta noite uma perca...; e suponho que poucas mais. [...] Quereria que me desse também licença de as eliminar... ou as eliminasse; para o que lhe devolveria o seu original, que me seria reenviado sem grande demora.» Régio, indirectamente, colabora na factura, suprimindo «duas ou três palavras que receio muito a censura não deixaria passar», como se confirma na quarta carta, de 24 de Abril. Aquelas expressões, pelo menos, não seriam recuperadas pelo autor.
Ainda “Depoïmento”, com outras particularidades do trema (suïcidou-se, reünida, etc., vida duradouro do circunflexo: êste, etc., e singularidades: mãi...), integra, em título de minúsculas, o sonho e a aventura / narrativas / vol. I, p. 19-77, Coimbra / MCMXLIII. Informa-se, aí, ter saído na colecção Os Melhores Contos Portugueses (Lisboa, Portugália Editora), com selecção, prefácio e notas de Guilherme de Castilho, enquanto a 2.ª ed. desta 2.ª série, sem data, trazendo “Depoïmento” a p. [399] 401-444, cita os três títulos do autor: Crónicas do Amor e do Tempo, Sedução, O Sonho e a Aventura. Logo, antes e depois da edição deste terceiro livro. Na mesma Portugália Editora, em 1967, Maria Judite de Carvalho selecciona-o para Os Mais Belos Contos de Amor da Literatura Portuguesa, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues. Lamente-se, num intervalo, que a «escolha de Vasco Graça Moura» de Os Melhores Contos e Novelas Portugueses tenha incluído contistas de circunstância e esquecido José Marmelo e Silva. Já não falamos de antologias menos quantiosas. Segue-se a colecção Mosaico / Pequena Antologia de Obras-Primas das Edição de Fomento de Publicações, Lda, Lisboa, s. d., p. 9-51, capa de Bernardo Marques e antecedida de duas páginas de inócua «apreciação crítica» de João Brito da Câmara. Comparamos esta edição com a seguidamente referida.
Fundamental, pela revisão autoral operada, é a lição das p. 29-98 em O Sonho e a Aventura, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, capa de Espiga Pinto. Servirá em parcos exemplos, de acordo com edição crítica já pronta, a aguardar melhor oportunidade. Pudera ter ajudado a melhorar o texto da primeira edição autónoma, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 37-114, com Nota Introdutória de Maria Manuela Morais Silva, que também assina a introdução geral a O Sonho e a Aventura em 2002, onde reaparece, a p. 209-248, pela oitava vez (ou nona, se contabilizarmos as duas edições de Guilherme de Castilho). Deslizes de pontuação – problema mais vasto em 2002 – e «por que» interrogativo ganhavam, aliás, no confronto desde 1939.
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“Depoimento” propõe-se «demorada e fiel observação» da «conduta humana», indagando da origem de doença, cuja razão não se pode ficar em «motivos insignificantes» de superfície. |
Dada a lume, entretanto, no Diário de Notícias, Lisboa, 14-V-1993, com outros materiais sobre o autor.
3 vols., Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 2003.
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Compara a desgraça «à foz dum rio cuja fonte é muitas vezes o seio da nossa mãe». Esta mãe perde, aparentemente, as duas filhas; numa reviravolta final, é ela que se perde. O «acontecimento bem frisante» (1965, p. 29) a narrar, assumindo-se analepse, vem enquadrado por comentários de actualidade em meio pequeno, numa circularidade fílmica com esboço de policial, em que o anel abisma a relação erótica. Elemento forte na tradição oral, o anel é decisivo no Anátema camiliano; nem por acaso, Márai Sándor (1900-1989) atribui-lhe importância semelhante em novela de 1938, também por mim traduzida do húngaro, A Herança de Eszter . Serão acasos? Estudámos suficientemente os anos 30 para conhecer eventuais laços literários, e tão flagrantes coincidências, no quadro ocidental?
O perfil matérico desta novela é de tipo expansivo, em ordem à explicação, ao reflexivo e ao comentário. Além de novos ritmos que uma diferença de 26 anos possa justificar (1939-1965), também com um timbre ideológico antes inviável, pergunto-me se a troca de alguma secura por intervenções carregadas melhorou a correnteza do drama. Será o caso de vivo mas inexpressivo diálogo entre o miliciano e a inquilina do rés-do-chão, cuja segunda metade (1965, p. 52-53) nada acrescenta à caracterização do primeiro piso.
Contudo, denunciando bem a perturbação do narrador face a Juja, mas, igualmente, a deriva de destino em relação a Lia, é curioso ver as oscilações textuais quando surge aquela e os dois finais que pensa para esta, numa atitude ainda evasiva. Para já, e quanto àquela, não é este o lugar para marcação de diferenças, tantas são a partir de 1965, p. 58, e, sobretudo, nas p. 59, 72-76, 79, 85-86, contra texto quase inalterado nas p. 64-69, 81-82, 96. Nesta, começam as falas da populaça, ausentes em 1943, com que, após exórdio, se abriu a narrativa na p. 30, completando o círculo, em cujo exterior quedaram propósitos de autor e um «talvez» destinado a Lia.
Confrontando, pois, as edições de 1943 (entre a de 1939 e seguinte, s. d., descontada inserção em Os Melhores Contos Portugueses) e 1965 – última revista pelo autor –, até ao encontro de Georgette, «nome de guerra» de Juja, perceberemos melhor a vida de uma dificuldade, como é sempre o texto para espírito inquieto e vigilante. Omitirei, fora de variante, circunflexo epocal (êle...), ocasional diferença de paragrafação e, nos diálogos, o comum virgular antes de travessão. |
1943 (p. 19-32), 1965 (p. 29-44)
1. para o outro (1939 para outro)
2. a tiro ] a tiro...
3. Ora a gente pensa e vê: que anda a razão assim boiando à superfície como qualquer pedaço de cortiça na água. ] Por motivos insignificantes?! A razão anda assim [...] na água. Pois não será a conduta humana merecedora de mais demorada e fiel observação?
4. Senhores: não se detém o médico a estudar ] O médico não se detém a estudar
5. desgraça porque ] desgraça, porque (2000, 2003 desgraça, por que)
6. o seio de ] o seio da
7. murmurarem, às vezes com ] murmurarem com
8. – «Por uma coisa de nada!» ] – «Por uma coisa de nada!» // – «E a calma do tipo? Vejam, impressiona!» // – «...»
9. É certo que a minha irresponsabilidade acabou por ser provada. Mas porque ] É certo que a minha responsabilidade acabou por se não comprovar, melhor, nunca foi juridicamente posta em causa, digamos assim. Mas porque (2000, 2003 Mas por que)
10. «Cínico revoltante». ] «Cínico revoltante. De facto, a conduta dos homens nem sempre é mais nobre que a dos cães. Eis, pois, para essa pobre gente, a confirmação
11. do nosso mal. E digo: a angústia de Lia ] do nosso mal. E o nosso mal é acima de tudo (2000, 2003 é, acima de tudo) conhecermos um universo tão belo, imensurável, sem fim, e não sermos suficientemente fortes para evitar perdê-lo, ou para perdê-lo sem medo nem lamentações. A nossa miséria é essa. Ah, quanto somos ridículos perante o inexorável e a morte! Digo francamente: a angústia de Lia
12. divino para ] divino, para
13. e para todos irrevogável ] e para todos inquietante e irrevogável
14. eu e meus colegas ] eu e meus camaradas
15. Até a côr das casas!) (Segue parágrafo.) ] Até a cor das casas!, amareladas como penitenciárias!) (Não faz §.) |
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006. |
16. Sim, para que o enviou? – pregunto. ] – Sim, para que o enviou? – pergunto.
17. a desgraça é ] a desgraça, é (2000, 2003, a desgraça é)
18. à meada da sua vida, ] à meada dos acontecimentos
19. há oito anos soubemos ] há oito anos, salvo erro, soubemos
20. do «papá» e numa compostura ] do «papá» e acomodada por fim numa compostura
21. um nome feio) suficientemente grosseira, sim, mas perdoável ] um nome feio) aparentemente grosseira, sim, na cor (marmorizada!), na distensão da pele, na placidez total... – mas perdoável
22. Porque a certa altura (1939 Porque, a certa altura)
23. a miúdo ] amiúdo
24. e seu marido falava muito de nós, interessou-se ] e seu marido falava muito de nós, os primos de Portalegre! – era sempre, interessou-se
25. injustamente ] injustamente
26. Sabiam, por colegas meus.» ] Sabiam por colegas meus da Faculdade.»
27. um novo capítulo ] um novo e último capítulo
28. é notório ] é realmente notório
29. desfeito a pouco e pouco. Desejaria agora não revelar nada ] desfeito a nosso muito bel-prazer. Nunca nos faltou o essencial. Que espécie de superioridade confere à pessoas educadas este simples pormenor de viver! Desejaria agora não ostentar nada
30. parentesco da última hora encontrou em mim uma reacção suficientemente forte para não concordar com êle. ] parentesco da última hora (avivado de pobreza disfarçada, é bem de ver) encontrou em mim uma reacção social suficientemente forte para não transigir com ele.
31. a Lia, também para sacudir-lhe ] a Lia, ao mesmo tempo para sacudir-lhe
32. Mas porque (2000, 2003 Mas por que)
33. tão sem encanto (1939 tão sem encontro)
34. Compreendi instantaneamente que tocara num dêstes pontos melindrosos, secretos, com ] Compreendi imediatamente que tocara num desses desvãos familiares – melindrosos, secretos – com
35. a sentir de novo a sua falta (1939 de novo sua falta) de ar ] e exibir de novo a sua falta de ar
36. E eu parvo (2000, 2003 E eu, parvo)
37. – «Pra nós» não, mamã, – ] – «Para nós», não, mamã! –
38. E D. Conceição só para mim ] E D. Conceição, só para mim (= 1939)
39. automóvel, luzes ] automóvel, um olhar violáceo riscando o ar, luzes
40. fausto ] fausto!
41. a irmã uma ] a irmã, uma
42. e do quintal viam-se pinheiros, uma vinha, ] e do lado do quintal havia pinheiros, uma vinha devassada,
43. Do alto (1939 Do lado) da frontaria, escoava-se a estrada lisa, ] Do alto da frontaria podia ver-se o escoamento da estrada lisa,
44. abandonando-a, os que seguiam ] abandonando-a ali, os que a seguiam
45. à sua porta um senhor de cabelos de oiro ] à porta um senhor de cabelo de oiro
46. Nem loira. ] Nem loira, de vanguarda.
47. Era diferente e eu vinha encharcado ] Era diferente de todo o real possível, era por assim dizer inimaginável, uma carne só espiritualidade, e eu vinha encharcado
48. transparecia o jôgo ] transparecia o ricto
49. Os senhores ] – O senhores
50. São soldados ] – São soldados
51. Nem tugíamos. O Convento fôra-nos ] Nem tugíamos. O bom do homem queria expressar-se concretamente, mas nem ideias, nem sons lhe advinham aos lábios, sem frustração. Riscavam o ar suas mãos ásperas e desesperadas. Quanto me apetecia sugerir-lhe as palavras oportunas, capitão! Eu ruminava-as: «– Vós vindes cheios de personalidade e preconceitos, quer porque sois ricos, quer porque sois sábios. Pois bem: varrei tudo isso do vosso cérebro urgentemente. A guerra está aí, mais feroz que nunca, mais universal que nunca, mais pavorosa!, e nós, nós todos!, só podemos mostrar-lhe uma face metálica disciplinada. Atrás dela, numa esteira de sangue e de ruínas, desaparecerão todas essas velharias e privilégios do mundo injusto em que vivemos. Uma nova ordem de coisas nos espera... – se conseguirmos ser fortes até ao heroísmo, ranger os dentes até à loucura!» // Se V. nos falava deste modo, capitão! Se nos dizia dos que deviam ter vindo e não vieram e deviam estar ali connosco lado a lado... E, apesar de tudo, era esta nova ordem de coisas que muitos supunham desprender-se dessa sua rudeza e obstrução verbal. Porque afinal eram já as palavras de Vergílio há 2000 anos... // Mas não. Militarão orgulhoso e agressivo, continuava a metralhar: «– São soldados como os outros!» // O Convento fora-nos
52. O seu milhão de toneladas deixa em tôda a gente ] Os seus milhões de toneladas – quatro quilómetros de construção maciça – deixam em toda a gente
53. Mas à noite, o Esplanada Bar regorgitava ] À noite, porém, o Esplanada Bar regurgitava
54. outono (2000, 2003 Outono)
55. quarto de costura, e, ] quarto de costura e,
56. sorrir e pôr-me admirado a olhá-la ] sorrir e ficar surpreendido a olhá-la
57. banalíssimos. § (1965, 2000, 2003, sem §)
58. D. Conceição que ] D. Conceição, que
59. salvaram-se? // As cartas tremiam-lhe nos dedos gordos, voltou a repetir, cada vez mais melada. // Lia demorou ] salvaram-se? // (E supondo aliciar-me com a sua própria dor): // – Ontem estava a acabar-se-lhes o oxigénio... // As cartas tremiam-lhe nos dedos gordos, voltou a interrogar, cada vez mais melada, menos paciente. Mergulhada no Submarino, as mãos puras acautelando (do olhar da mãe), ora uma, ora outro, a abertura arreliadora do decotezinho nevado, Lia demorou
60. Turvava-se. ] Turvava-se, ai, era um desespero...
61. a um canto. § ] (Faz § em) Entretanto Lia
62. rodopiou sozinha, uma vez, ] rodopiou sozinha, uma, duas vezes,
63. às furtadelas. Sem os lábios bulirem, ] às furtadelas. Parecia, porventura, desejar surpreender-me a olhá-la. Que admirava eu nela? – desejaria saber. Os seios? (Tão compostos!) A cinta? O gesto fino? A pureza de alma? Sem os lábios bulirem,
64. «O senhor, que ] «Pois bem, o senhor que
65. abraçar!...» ] abraçar!»
66. tempo!...» ] tempo!»
67. não danço. ] não danço! (E quando me lembro, meus Deus!, os anos da melhor juventude!)
68. Bem sei: não ] Bem sei. Não
69. Fui. Beijei-a nos olhos. No mistério da sua vida, ] (Faz §) Fui. Beijei-a nos olhos. Medi-a a todo o longo de mim, ao longo da minha própria vida confortável, não sem doçura e enternecimento. Beijei-a, beijei-a, porque ela tinha direito a ser beijada... pousei-lhe a boca no rosto, ali a repousei. Direi antes: Pousei-a no mistério da sua vida,
70. de corpo e alma – dócil, contente, como um cordeiro perdido quando encontra ] de corpo e alma – dócil, contente – cordeiro perdido que encontra (2000, 2003 de corpo e alma dócil, contente – cordeiro perdido que encontra)
71. Lia largou-me, ] Lia desenleou-se de mim,
72. meio coçado ] todo coçado
73. atemorizada. Assim estimulado, eu pus um novo disco, uma agulha nova, venci com um simples gesto a hesitação de Lia, enlaçámo-nos (1939 enlaçamo-nos). ] atemorizada. Robusteci-me. Até aí o meu contacto fora, acima de tudo, culto espiritual. Mas estimulado assim, despertado no sangue, eu pus um novo disco, desses mais devastadores, uma agulha nova (mais penetrante), venci com gesto mole a hesitação de Lia, reenlaçámo-nos.
74. Beijei Lia na bôca, emquanto (sic) a mãe se queixava. ] Beijei Lia na boca devagarinho, anichei-lhe os seios no meu peito, embalei seu corpo cálido, gostoso, amadurecido, como um ninho de castidade e preservação... – enquanto a mãe protestava expelindo ais aflitos.
75. E Lia não a ouviu, comprimiu-se mais, o seu desejo era ficar colada e esquecer-se. ] lia não a ouviu. Comprimiu-se mais e mais, tornou-se leve, tão leve, o seu desejo era ficar colada a mim, dissolvida em mim, deixar de existir para este mundo negado e impiedoso.
76. ergueu para mim o pescoço alvo, o olhar, ] ergueu para o meu rosto o pescoço alvo, a coragem do olhar,
77. encontrar nêle ] encontrar neste
78. dedos estendidos ] dedos, estendidos
79. – Primo José (sem espaço até 1943)
80. o terço – (Sem vírgula, aqui, é erro geral, tratando-se de vocativo; erro regular, após travessão.)
81. por quem é... ] por quem é!
82. uma partida, ] uma partida, só um bocadinho,
83. E conversar um bocadinho, ] E conversarmos aqui em família,
84. Quis intrigar-me). Observei: ] Quis intrigar-me, não pude recusar. Ainda observei):
85. E em seguida ] E, em seguida
86. amor persistente ] «amor persistente» |
Encontramos, neste primeiro apanhado, amostra representativa do que tão miúda e insistentemente preocupa um autor.
O olhar sobre a página é sensível a espaços, aspas, itálicos, travessões, parêntesis, reticências, exclamações, mesmo a vírgulas antes de dois travessões (em que persistem os franceses) e maiúscula após dois pontos, típica num Régio, por exemplo. Alterações mais sensíveis visam um clímax erótico (47, 59, 63, 73, 74, 75, 76), em vista à, afinal, fracassada noite, com irrupção de Juja – que, por outro lado, justifica a paixão de uma Lia fora de si, no baile quase fatal.
Afora acertos estilísticos, fundamentos de verosimilhança (9), revisão do tempo da escrita (67), os acrescentos mais pertinentes (3, 10, 11) lançam olhar cru sobre a nossa condição, em que já se evidencia um olhar retrospectivo sobre o tempo de guerra mundial iluminando, em 1965, a luso-africana (51) e seus índices na Metrópole, ao aludir às penitenciárias (15). À frente, esse sentimento agudiza-se, numa passagem do «meu futuro» portalegrense a viver de «uns escassos tostões para o café» (1943) dados pela mãe transfigurado em preocupação colectiva: «Que pensar, por exemplo, desta aproximação da guerra? Estamos aqui no Outono – um 2.º ciclo miliciano extraordinário, preparação de quadros urgentíssima. A juventude pressente. A juventude simula ignorar mas não ignora. E não receia. Aparentemente não receia. Receia, sim, no fundo do seu coração. Até que ponto poderia eu tomar compromissos graves e por que prazo? Medito sobre a evolução do mundo, na orla da floresta. Moral e vegetação deixam cair do alto grande parte da sua folhagem caduca.» (p. 54) Este adjectivo tem um alcance inopinado.
O contraponto social entre o primo José, o narrador miliciano de Portalegre, «veterano do Instituto Superior Técnico» (em 1943, «licenciado em Letras»), e a família mafrense, com origens transmontanas (29, 30, 34), explicaria o final de 1943:
«O melhor – não acham? – será eu talvez levar meus pais a oferecerem-lhe um qualquer leve serviço em nossa casa!»
Outras próteses de 1965 isso reiteram. À ideia de matrimónio, em que a prima Conceição «Seria desinteressadamente a dona de casa.», acrescenta, cínico:
«De repente, sorri: Vi-me encarregado duma passagem de nível, com a obrigação, além do mais, de regar os lírios todas as manhãs. Pobres criaturas de Deus, os seus problemas económicos amesquinhavam-nas. Eu reconhecia que tudo começava a conjurar-se e muito especialmente contra mim próprio: “Se as pessoas são sinceras comigo, confrangem-me; se são fingidas (como a Georgette) irritam-me. Só me interessa um convencionalismo básico, de limites definidos a respeitar”.» (p. 48)
Como compreender, assim, que 1965 torne irrelevantes estes sinais? Eis o seu final:
«O melhor – não acham? – será ela ficar de enfermeira, se possível, naquele mesmo hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram.»
O parêntesis final é, tímido embora, um avanço em relação a 1943, porque, além de sabermos Lia sangue da família, ela tem, doravante, o seu sangue, num gesto amoroso:
«(Achei-o muito acolhedor, naquela noite, quando lá corri a doar-lhe o sangue para transfusão...)»
No parágrafo anterior, a alteração mais significativa resumiu Lia – no acrescento: «inocente como de há longo tempo a vemos» –, de modo a justificar esse aceno terminal. Recuando, todavia, aos dois parágrafos em itálico, ausentes de 1943, como conciliar tudo isso com o «desejo secreto» de casar com a Georgette? Será porque, lê-se logo a seguir, «o homem não sabe senão supliciar-se»? É provável. A «conduta humana» é, de facto, incoerente (já avisara na p. 51), exigindo «de pronto um exame minucioso», como se comprova nas suas íntimas e reconhecidas contradições, exigindo «uma pronunciação mais justa», como se verifica nestes balanços textuais, à imagem do ser. |
Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa, com uma dissertação intitulada Um Sonho de Paz Bimilenário: A Poesia Épica de Virgílio (1940) – ocorrera, em 1930, o bimilenário do nascimento do Mantuano –, triste é observar a ausência do nome de José Marmelo e Silva quando foi de celebrar, em 1981, o bimilenário da morte, cujas actas foram editadas sob o título Virgílio e a Cultura Portuguesa (INCM, 1986). Esse esquecimento é sintomático do destino que tocava ao escritor, algo atenuado, em 1987, no cinquentenário de Sedução, com artigos e dossiês na Imprensa. Encontra-se além, todavia, um curioso artigo de José de Almeida Pavão, “O herói e a história em Virgílio e em Camões”, que, apoiado nas diferenças entre epopeia e romance, segundo o Lukács György de A Teoria do Romance, interessam ao nosso escritor e estudioso do grande Latino. Resumindo, «a psicologia dos heróis d’Os Lusíadas é rudimentar, em oposição à complexidade das suas personagens mitológicas». Isso acontece porque Camões se apoia num herói colectivo, na «psicologia dum grupo», ficando, assim, ausente «uma carga subjectiva sugeridora de uma análise adequada à devassa ou á escalpelização de uma alma, quando tomada na sua unicidade». E, recorrendo ao herói de Fanga, de Alves Redol, conclui: |
É esta a característica de que participa uma boa parte das personagens do romance neo-realista, onde o peso da massificação uniformiza uma problemática, insusceptível de se fraccionar em cambiantes diversificados. O indivíduo, neste caso, não existe na realidade, porque passa a assumir-se no simbolismo de uma representação plural. (p. 157-158) |
Ora, numa entrevista a José Correia Tavares , já Marmelo e Silva julgara «a matéria épica renascentista – menos amadurecida que a das epopeias clássicas. Em confronto com a Eneida, o poeta camoneano apresenta-se-nos, de certo modo, cru e precipitado. É que a Eneida nascera do lendário cantante dos poetas; Os Lusíadas, da poeira morta dos cronistas.»
Incomoda-me, entretanto, vê-lo como «ponte» ou «transição» entre o presencismo e o neo-realismo, como querem alguns, ou, pelo nenos, a caminho do neo-realismo historicamente firmado por Alves Redol, em 1939, com Gaibéus. De facto, a historiografia, neo-realista ou não (p. ex., o referido António Pedro Pita e o João Pedro de Andrade de Tetracórnio, em Fevereiro de 1955), mal o cita ou rasura-o por completo; pelo que, se designação neo-realista lhe couber, terá de ser, até pelo seus romances de formação, enquanto companheiro do Miguel Torga de A Criação do Mundo, cujos dois primeiros dias são de 1937, ano de Sedução, Torga esse igualmente preocupado pela revisão oficinal – e a revisão daqueles dias em 1969 estará na base da tese de Clara Rocha, O Espaço Autobiográfico em Miguel Torga (1977).
Subentendo, do mesmo passo, que o exercício sobre o próprio texto (entre os ditos neo-realistas, só percebido por Carlos de Oliveira) dá o alcance de uma consciência rara e angustiada, e que, em vez da palavra «versão», e olhando ao penúltimo capítulo de Adolescente Agrilhoado, deveríamos dizer «re-humanização», como lembra Mário Sacramento, que justifica: «Na hierarquia dos mitos, o homem é o princípio e o fim.» Não está Terêncio no limiar de Sedução? Já o Autor confessara a José dos Santos Marques, em 1960: |
O escritor é a luz que vai adiante. A chamada verosimilhança, em ficção, tomou pois, para mim, um novo significado. Esclareço ainda. Não buscarei, daqui em diante, o verosímil passado ou presente, mas sim o verosímil futuro. Abrir caminhos através da angústia do nosso tempo – eis o que ambiciono. |
Mestres e modernistas do seu tempo, José Marmelo e Silva elege Virgílio e Camões. Ao realizar-se pela escrita – para que precisa de ter condições (e não, forçosamente, a recepção crítica por que não se vendeu) –, julga «VENCER O TEMPO, contribuindo para um mundo melhor». Edita obras de «síntese», «económicas» (p. 5), com personagens do seu tempo, tão inconclusas como as idades e situações transitórias que as mesmas vivem, e qual a obra não completa do Autor. “O Cabo Elísio”, que encerra 2002, tem outra versão; e qual a fortuna de O Anjo, que seria, «de todos os meus trabalhos de ficção, o mais equilibrado, para não dizer o mais |
Jornal de Letras e Artes, 9-III-1966, agora em volume, O Timbre das Vozes, 2.ª ed., 2003 [2001], Lisboa, Garrido Editores, p. 112.
“A insurreição dos mitos em José Marmelo e Silva”, Ensaios de Domingo, Coimbra, 1959, p. 242.
Conversa entre Plátanos com José Marmelo e Silva, Lisboa, Col. Depoimento, 1960, p. 4. |
tranquilizador»? Vê-se, subliminarmente, como reconhece 55 anos – entre 1932 e 1987 – de uma prosa intranquila, face à anquilose moral e social da comunidade? Essa intranquilidade é sua característica.
Quanto ao «tema» (João Gaspar Simões), «vectores fundamentais» (Maria de Fátima Marinho) ou «problemática nodal» (Maria Alzira Seixo ) desta obra, teríamos, em recensão daquele (Diário de Notícias, 13-VI-1968), sempre o mesmo, isto é, «o tema dos amores frustrados, das mulheres levianas, dos encontros sensuais avulsos, tudo isto misturado com uma sentimentalidade realmente ingénua, poderíamos dizer, mesmo provinciana, mas que, na focagem multifacetada da narrativa, ganha relevos singulares, imprevistos súbitos, aspectos onde a ferocidade e a ingenuidade, a candura e a fraternidade se dão fraternalmente as mãos»; fala a segunda «da referência quase obsessiva à precaridade das condições sociais, da alusão sarcástica à hipocrisia religiosa e da vivência doentia de uma sexualidade exagerada, porque incompreendida ou resultante de frustrações que parecem só poder resolver-se através de um desejo simplesmente físico e, com frequência, mal direccionado» (2002, p. 8); enfim, considera a terceira «O desejo de libertação do indivíduo (do seu corpo tanto como do seu espírito) em relação aos fantasmas interiores que o obsidiam tanto como às circunstâncias de retenção que social e economicamente lhe limitam o alcance da existência» .
Estas últimas palavras parecem bebidas na citada entrevista de José Correia Tavares, quando o Autor explica estar a escrever, aos 53 anos, sobre matéria de três décadas antes: |
[...] estou ainda a libertar-me dos meus fantasmas dos 22-26 anos. Nesta idade, a imaginação e a experiência foram mais activas, mais fecundas, que os mecanismos de realização. E aí fiquei eu, por assim dizer, enleado em problemas, planos, solicitações, todos do mundo adolescente, prisioneiro duma objectividade que não perdoa. (p. 111) |
Quando assim, a matéria-prima ficcional releva dessa inquietação, que só o devir ilumina e explica. E, nesse processo, torna-se fundamental o labor clássico de revisão do texto, no que é, simultaneamente, aperfeiçoamento da narrativa – em particular, personagens – e do sujeito que remove. Ou seja, «não deveríamos falar aqui de recriação, mas antes de progressão, ou até mesmo de educação.» (Tavares, p. 112) Contiguamente, exige-se o «sábio emprego que um homem deve fazer da linguagem» (p. 113). Daí, a economia, que desagua em obra parca, e, mesmo assim, aflige muitos, que julgam ter lido tudo á primeira – isto é, com a tão-só primeira edição. É desconhecer um percurso, nem sempre fácil, e as diferenças que emergem, sobretudo, num chão acidentado como é a fronteira portuguesa, a pedir-nos, diariamente, superação. Reside aqui, creio, a ética literária de José Marmelo e Silva |
Ernesto Rodrigues |
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