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O PROGRAMA que consta de:





 

A Sedução da Ficção: Atas do Colóquio do Centenário do Nascimento de José Marmelo e Silva

Coord. Arnaldo Saraiva, [Espinho], CEJMS, 2014.


Apresentação por Tânia Moreira


Museu do Neo-Realismo

27 de Setembro de 2014


O volume que acaba de se imprimir reúne a versão escrita da maior parte das comunicações apresentadas ao Colóquio do Centenário do Nascimento de José Marmelo e Silva, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a 6 de Maio de 2011.

Hoje, a quinze dias de se assinalar o 23.º aniversário do falecimento do autor homenageado, apresenta-se ao público este volume que prova bem quanto a obra de Marmelo e Silva permanece viva e bem viva, como o têm demonstrado os vários estudos dados a lume nos últimos anos, muito devido ao empenho do Centro de Estudos José Marmelo e Silva (CEJMS). A fecundidade crítica é justificada pelo valor da obra deste neo-realista português, que se assumia ele próprio um neo-realista heterodoxo, criticamente desinteressado das restrições acéfalas e inautênticas de qualquer tipo de escola ou academismo.

O título do volume inscreve-se sob o signo da novela seminal do escritor, Sedução. Publicada pela Portugália ainda em finais de 37, esta obra, originariamente inspirada na arte da dança, constituiu um marco significativo na história da ficção portuguesa do século XX. O termo sedução pulveriza-se, na verdade, em múltiplos sentidos com que podemos equacionar a obra de José Marmelo e Silva. Desde logo, aponta para o universo sensorial e sensual que o autor explorou através de um intenso ambiente de imaginação erótica. Sedução indicia também a atracção dos efeitos da palavra, a aisthesis verbal imprescindível para o devir da consciência, quer na assumpção fenomonológica das personagens, quer no repto lançado ao juízo do próprio leitor. Transpondo a sensibilidade, essa força magnética movese ainda em direcção a um pacto ético assente na crença de que é pela emergência do verbo sentido que a praxis humana se mobiliza.

E começo pelo fim do volume, pelo ensaio a que Rui Zink sugestivamente deu o título de «Espinho». Nele, Zink lê a obra do autor pensando a vida como inscrição. O espinho, ou, por outras palavras, a chaga que a vida crava singularmente em cada homem, molda-lhe o olhar e a escrita por onde ele olha. Neste propósito, o nome da terra que acolheu por longos e memoráveis anos o escritor nascido na Covilhã funciona como leitmotiv da sua metapoética.

Para quem toda a vida escreveu, José Marmelo e Silva oferecenos uma obra relativamente breve, facto que sempre assumiu, na escrupulosa perseguição da obra perfeita. Como nota Rui Zink, a maturação contínua do vivido faz dele um autor da revisitação. Marmelo e Silva reescreve, reedita, revisita. Este efeito de contínuo retorno ressuma do labor limae, que se impõe no gesto que lapida, que se quer eficaz ao mobilizar a sensibilidade do outro que lê.

O criador de Desnudez Uivante aceita ser cravado com o espinho dessa literatura de mal-estar, que enuncia, e denuncia, uma anquilose espiritual, plasmada na impassibilidade colectiva. Daí que o ensaísta termine sublinhando a carga negativa que a assinatura do autor suporta como estigma de um anátema irresolúvel, na demanda pela autenticidade: «as histórias começam com ‘era uma vez’. / No caso de Marmelo e Silva, talvez mais sensato seja dizer: Era uma voz» (p. 198).

É justamente a questão da voz, ou melhor, das vozes, que ocupa Marta Afonso na análise à novela epónima do volume: «O discurso de Sedução: breve reflexão sobre a(s) voz(es) e o(s) tempo(s)». Numa abordagem que alia a narratologia à pragmática linguística, a autora do artigo evidencia o modo como a ardilosa manipulação das forças deícticas, sobretudo as do tempo, indexam a obra marmeliana na modernidade.

Sobre a mesma novela, encontramos o estudo de Helena Lopes, «Mostração e autovigilância em Sedução de José Marmelo e Silva», onde se ilustra como a arte de mostrar domina sobre a arte de contar, o que resulta num substancial formante para a configuração da identidade do sujeito, que vê e se vê, e da realidade, que o sujeito vê e dá a ver. Aliando a aparelhagem psicanalítica — de Freud a Lacan — aos filósofos cujo pensamento fundou o que actualmente se designa, no âmbito dos estudos culturais, por surveillance studies — Michel Foucault e Gilles Deleuze —, este ensaio descreve o funcionamento de um dispositivo ideológico em boa verdade decisivo para a reflexão em torno da obra marmeliana. Como demonstra Helena Lopes, o grau máximo do apuramento censório consiste nessa autovigilância que o sujeito antecipa e alucina no olhar sobre si enquanto actualiza a sua relação com o outro. Com efeito, o problema situa-se no âmago do universo narrativo de Marmelo e Silva e explica a determinação radical pelo emergir da consciência no indivíduo, sem a qual a renovação do desígnio humano resulta inviável.

Esta obsessiva função executada pelo vigilante encontramola também em Depoimento, na figura da Dona Conceição, mãe de Lia, que, qual Cérbero, mesmo a dormir exerce a sua vigilância. É esta obra que Fernando J. B. Martinho analisa, com um particular enfoque sobre o seu enigmático incipit. Escrito em jeito de epígrafe, o prelúdio recupera o legado das matrizes clássica e judaico-cristã — tão caro, como sabemos, a Marmelo e Silva —, que vem testemunhar uma concepção fatalista da existência humana. Ao investigar alguns dos dispositivos poéticoretóricos da novela, Fernando J. B. Martinho revela como o proémio de Depoimento serve de força motriz no desfiar perscrutador do destino e do sentimento de culpa assumido por um narrador «autoconsciente do acto narrativo que realiza» (p. 63). É deste modo que a auto-ironia do narrador, além de participar do ethos, constitui uma tentativa de resgaste do seu próprio sentimento de culpa.

Por sua vez, o ensaio de Rui Lage orienta o foco de atenção não para o incipit, mas para a derradeira passagem do fragmento sobrevivente de O Cabo Elísio, narrativa inédita cujo texto inacabado integra a edição da Obra Completa de José Marmelo e Silva, coordenada por Maria de Fátima Marinho (Porto, Campo das Letras, 2012). A coda do texto suscita, segundo Lage, um movimento de ascese que impele à reflexão sobre as problemáticas fundamentais da obra de Marmelo e Silva, emanadas da intersecção entre a condição do homem e a condição do escritor. Neste sentido, Rui Lage refere que a obra marmeliana visa «preservar a integridade da esfera individual sem abdicar da cooperação humana activa ditada por uma ética da atenção e da responsabilidade que surge, e urge, diante da violência, da injustiça e da exclusão de que é vítima o próximo» (pp. 27-28).

Este compromisso de atenção ao outro — compromisso em que radica o próprio programa neo-realista — está implicado na tensão do texto, nesse magnetismo irresistível cujo impacto não deve degenerar na anestesia hipnótica, frustradora e inoperante. Daí que Lage chame a atenção para o conflito entre ideais estéticos e ideais éticos vivido por Marmelo e Silva, que ousa assumir o risco da liberdade criativa. Afinal, o impulso para a ascensão desestabiliza o homem que se reconhece na sua dimensão humana, desorganizao nas suas arramas ideológicas, nos grilhões do compromisso político.

É essa mesma convicção que defende José Carlos Seabra Pereira em «Desejo de ser — sob o signo da incerteza e da cisão», quando sustenta que o desconcerto gerado pela novelística marmeliana não se compadece com as visões maniqueístas do neorealismo de espírito estrito. Com efeito, embora reconheça afinidades entre a escrita de Marmelo e Silva e a literatura comprometida, o investigador exibe a dimensão de pluralidade comunicativa que faz com que a obra de Marmelo e Silva resulte num projecto literário muito mais desafiante e profundo ao sondar a complexidade do homem nas suas internas contradições e nas suas eternas interrogações. E assim, conclui José Carlos Seabra Pereira, a iniciativa antropológica de Marmelo e Silva acaba por alcançar uma maior efectividade no contributo para um olhar atento sobre a esfera sóciopolítica.

A literatura livre de cunho presencista afirma aqui a sua presença e não por acaso o ensaísta aproxima o pensamento de José Marinho à escrita de José Marmelo e Silva. Para José Carlos Seabra Pereira, este desiderato da liberdade justifica a opção frequente pelo género novelístico na ficção marmeliana. À abertura do universo ideológico — nas suas mais inveteradas interrogações éticas — corresponde a abertura formal de uma narrativa breve que estira a ausência de limites, deixando o desconforto do irresoluto e do fragmentário como a sua mais pregnante marca. Os auspícios da fortuna literária da obra de Marmelo e Silva enraizam-se portanto numa ontologia da incerteza e da cisão que contribuem decisivamente para a tão almejada reabilitação da dignidade humana.

A adolescência e a juventude, estádios iniciáticos especialmente propensos à metamorfose reflexiva e auto-reflexiva, merecem particular apreço por parte de Marmelo e Silva. Dois ensaios que integram o volume interessam-se precisamente pela emergência da voz crítica e dissonante desse eu em iniciação: «’Sozinho contra o mundo inteiro’: representações da infância em José Marmelo e Silva», de Ana Margarida Ramos, e «Autobiografia e ficção: uma leitura de Adolescente Agrilhoado», de Maria João Reynaud. Ambas as autoras sublinham a capacidade de reconstrução do adolescente face ao conflito emergido do confronto com as amarras institucionais. A energia da púbere idade encontra na figura in absentia de Prometeu um privilegiado símbolo da força combativa e regeneradora. Além do mais, a convocação do mítico patrono das artes propicia a convocação do exercício da escrita enquanto autognose e catarse que viabiliza um contraponto ascendente face ao abismo do aprisionamento experienciado pelas personagens.

Acerca da subversão simbólica dos espaços institucionais trata o ensaio de Cristina Costa Vieira, «Do imposto ao exposto, ou a caserna e a alcova em Desnudez Uivante». A lógica de imposição dos lugares opressores, designadamente a caserna militar e o internato freirático, surge combinada com a exposição de carências afectivas das personagens que acabam por forjar a sua própria opressão ética e moral.

Por seu turno, no «Inquérito a 21 entrevistas com José Marmelo e Silva (19431987)», Ernesto Rodrigues submete a um olhar clínico o conjunto de entrevistas que ele próprio editou sob o título O Mágico Pressentir do Artista ([Espinho], CEJMS, 2011). Este inquérito denuncia as fragilidades das entrevistas coligidas na medida em que o género dialógico por natureza propendeu a degenerar para os limites de um interrogatório enviesado, silenciador da voz problematizante do entrevistado. Não obstante, se é verdade que, em vez de espoletarem a interrogação enquanto exercício de abertura e possibilidade de divergência, as entrevistas feitas a José Marmelo e Silva resultaram num empobrecimento crítico, esta carência dialógica não logrou todavia ocultar o tónus pensante do autor de Depoimento deixando dele indeléveis vestígios.

No ensaio seguinte, Celina Silva sustenta que a permanente revisitação no processo criativo de Marmelo e Silva, a que há pouco fiz referência, constitui uma vocação do programa humanista que infunde a sua poética. Atento ao permanente devir da história do homem, Marmelo e Silva concebe a criação artística como um acto contínuo de metamorfose inerente à própria escuta do artista em relação ao mundo que pulsa diante de si. Encontramonos portanto perante uma escrita com aguda consciência do trabalho que a matéria de que é feita incessantemente lhe exige. Somente deste rigor dirigido à plasticidade verbal pode resultar uma autêntica denúncia, não somente entendida na passividade de uma constatação, mas realmente empenhada numa anunciação activa, porquanto esperançada e aberta a um porvir.

Este testemunho da consciência ético-estética que a obra marmeliana consuma faz do seu autor um neo-realista crítico, que se coloca intencionalmente à margem de qualquer imposição de escola. A Marmelo e Silva interessa muito mais dar vida ao real do que o petrificar numa anquilose literária. Assim, o seu projecto é o de um verdadeiro e integral realismo vivo a que só a justa ficção pode dar corpo. O dinamismo da liberdade criativa corresponde pois à aspiração de uma liberdade humana perseguida pelo escritor autenticamente empenhado em atingir a cosmovisão social a partir da perspectiva individual. Neste processo, a auto-crítica que sustém fortemente este labor poético desempenha uma função preponderante na germinação de uma arte romanesca heteroglótica, cujo dialogismo encerra a mais profunda e radical lição humanista de solidariedade cooperante e de abertura construtiva.

De facto, José Marmelo e Silva não aceitou a ortodoxia. E por isso a sua obra merece ser homenageada justamente aqui, no Museu do NeoRealismo, onde se perpetua, com rigoroso e genuíno sentido de missão, a memória daqueles que resistiram e que transmitiram o espírito dessa resistência através da arte. José Marmelo e Silva escreveu para resistir. Não apenas para resistir ao regime autoritário que dominava à época Portugal, à deturpação ética e moral que grassava na sociedade portuguesa, ao atraso sócio-cultural determinado pelo solilóquio do aparelho censor, mas acima de tudo para que resista e persista, inexorável, a memória colectiva e individual. O desejo pela literatura não pode ser aí considerado um óbice.

 








 




 
 

 
 

 
 
CASA DA CULTURA JOSÉ MARMELO E SILVA - PAUL (Beira Baixa).
 



 
 

 




 

 


 



 









EXPOSIÇÃO BIOBIBLIOGRÁFICA SOBRE JOSÉ MARMELO E SILVA - BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ESPINHO


CONFERÊNCIA SOBRE JOSÉ MARMELO E SILVA

Ramiro Teixeira
Já uma vez narrei o meu encontro com José Marmelo e Silva e vou repeti-lo... [+]



HOMENAGEM AO ESCRITOR JOSÉ MARMELO E SILVA [+]

UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

 





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