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UM HOMEM INTACTO

Apresentação de “Não escrevo para vender livros: fotobiografia de José Marmelo e Silva”, da autoria de Arnaldo Saraiva


O título Não escrevo para vender livros, escolhido para a fotobiografia de José Marmelo e Silva, não é um título decorativo ou alusivo, mas um título que podemos dizer actuante, como actuante já era o título da edição da obra completa do escritor: Não aceitei a ortodoxia. Ambos transparecem uma ética, um código de valores que nos diz da postura de um criador diante do mundo. E não só do mundo livresco, ou literato. Trata-se de contribuir para o esclarecimento da vida, e não apenas conformar-se a ela ou decalcá-la.
Também a fotobiografia que hoje apresentamos, fruto do labor de Arnaldo Saraiva, contribui para esclarecer a dimensão humana de José Marmelo e Silva. Fá-lo através de textos, fotografias, cartas manuscritas e dactilografadas, sobrescritos, bilhetes-postais, registos de exames, cadernos escolares, certidões e documentos de identificação, capas de livros, páginas de jornais e de revistas literárias, cartazes, caricaturas, sebentas, objectos pessoais, enfim, fá-lo através de todo o enxame documental que autentifica a biografia de um indivíduo. A fotografia, porque congela o tempo, permite ver o que foi efetivamente visto, mas resiste, em simultâneo, à continuidade constitutiva do relato histórico, e produz um efeito paradoxal. Ao mesmo tempo que a fotobiografia nos apresenta realidades vividas, e assenta na autoridade de documentos verídicos (que o próprio fotobiografado produziu ou manuseou, ou que o retratam), a natureza das suas unidades discretas faz com que não tenha como escapar à atomização e à descontinuidade. Por outro lado, não é líquido que o ser humano percecione o seu passado e a sua biografia como uma continuidade: quando assim é, estamos no domínio da ficção, de uma ficção retrospectiva. Na verdade, a memória é por natureza selectiva, fragmentária, quando não arbitrária. A fragmentação da fotobiografia é, de certo modo, mais conforme à vida tal como cada um de nós a recorda: heterogénea e descontínua.
Arnaldo Saraiva escolheu para início desta obra a fotografia a preto e branco de uma ribeira, a ribeira da Caia, ou do Paul. As suas águas correm ao centro, encaixadas entre a espessura vegetal que povoa ambas as margens, e acolhem duas fragas gémeas, achatadas, em jeito de açude suave. Ao longe, no terceiro plano, vê-se a Serra da Estrela encimada por um rectângulo de céu. O rio da vida, portanto, no seu tempo cíclico e indiferente aos destinos do homem, um dos símbolos mais universais e duradouros da cultura humana. Em vez da casa onde nasceu Marmelo e Silva, Arnaldo Saraiva começa por dar-nos um quadro da natureza intocada e assim inscreve as origens do escritor numa paisagem telúrica e numa génese elemental, como quem sugere que não se pode dissociar um criador da moldura ecológica que informou as suas primeiras experiências e perceções da vida.
A iconografia visual surge, de início, despovoada da figura humana, ainda que se descrevam os ofícios, as ocupações, o contexto social, económico e demográfico de uma aldeia beirã, o Paul. Nas fotografias que a ilustram retrata-se não só uma localidade específica, com os seus traços regionais, mas um país hoje despovoado e irreconhecível, o país rural, o país interior. A fotografia do que resta do moinho em que nasceu José Marmelo e Silva impõe-se como alegoria desse país. Numa composição quase abstrata, mostra-se apenas parte de uma parede de granito e xisto, vazada por uma janela sem caixilho e encimada por uma bordadura de telhas. A imagem dá-nos essencialmente a pedra, um tempo geológico.
E a primeira fotografia onde comparece José Marmelo e Silva, se excetuarmos aquela, tardia, que surge logo no reverso da primeira folha, mostra-nos o futuro escritor, então muito jovem, equilibrado em duas pedras no seio da ribeira do Paul, colhendo água com as mãos em concha, ou lavando-as, enquanto posa sorridente para a objectiva do fotógrafo.
O excerto escolhido de uma entrevista de José Marmelo e Silva de 1966 ajuda-nos a relacionar a sua arte romanesca com a moldura humana e paisagística da terra que o viu nascer: “não se pretende insinuar que a minha ficção dê ao ambiente geográfico, e muito menos à paisagem, uma importância protuberante… No entanto, na aridez granítica, a miséria milenária, a resignação patética daquela gente humilde… - acutilaram sempre, na criança que eu fui, um desejo tenaz de superação” (p. 13). Ao mesmo tempo que se guardam as devidas distâncias do paisagismo regionalista, a passagem permite discernir no horizonte mental e afectivo do escritor a fidelidade a um lugar, de que parece ter emanado o desígnio humanista que sempre reclamará para a sua obra: um desejo tenaz de superação diante da miséria que testemunhou e “um apelo de longe” que lhe batia “das muralhas sobranceiras da Estrela e da Gardunha” (p.13). Curiosamente, na estilizada caricatura de Marmelo e Silva reproduzida mais à frente, assinada por Manuel Maia, vê-se, atrás da silhueta de finalista da Universidade de Coimbra, a Serra da Estrela com uma estrela a estrelá-la, e um trilho serpenteante no seu encalço… ao mesmo tempo que se descreve Marmelo e Silva, nos versos jocosos que acompanham a caricatura, como um “bon vivant” mas “só em imaginação”… O que sugere que o homem culto e cultivado não camuflava inteiramente as origens telúricas.
Nessa mesma página encontramos apontamentos dos anos oitenta selecionados de uma agenda. Tais apontamentos deixam-se ler como um singular poema, pois exprimem as sensações ímpares de habitar num moinho de água. Lembremos que era camponês e proprietário de um moinho Emílio Antunes Marmelo, seu pai:

O moinho ao rés da água.
Os animais ao rés-do-chão.
Nós no andar de cima.
Recordo os sonos infantis da tarde.
Ao despertar, alegrava-me, os pesadelos diluíam-se.
O grande medo em criança era o da morte. Morte dos pais. Morte minha.

No andar de cima: mas com a ribeira de monte a monte,
os grande blocos de granito chocando uns nos outros
estremeciam as paredes. E o furor da água zoava cavernoso (p. 13).

 

Ilustra-se, em seguida, a progressão no espaço de quem visa superar o confinamento mental e cultural de uma aldeia portuguesa no princípio do século XX: a instrução primária, a frequência da catequese e a entrada num seminário – o Seminário Menor do Fundão; a Covilhã dos anos 30, onde fez estudos secundários, e em cuja imprensa regional debutou, inconformado com a hipocrisia e intolerância do regime fascista.
Só então começam a surgir reproduções de capas de obras de Marmelo e Silva ou de escritores com quem ele se relacionou. Judiciosamente, reproduz-se a capa de Manhã submersa, de Vergílio Ferreira, que José Marmelo e Silva conheceu no Seminário Menor do Fundão, ao lado das capas de Adolescente e da sua versão ampliada, Adolescente agrilhoado. São, sem dúvida, as duas obras-primas do subgénero da ficção portuguesa que versa a experiência do seminário.
Arnaldo Saraiva guia-nos através do roteiro biográfico: a frequência do liceu em Castelo Branco, cidade onde se encontrava quando ocorre a estreia em livro com O homem que abjurou a sociedade, em 1932; os “tempos sombrios” enquanto estudante de Filologia Clássica, em Coimbra, que foram também de relacionamento com as figuras da Presença, onde colaborou, e de participação activa na tertúlia coimbrã que animava a livraria Portugália de Augusto Abranches, frequentada por figuras do neo-realismo nascente: Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, João José Cochofel, Fernando Namora ou Políbio Gomes dos Santos, cuja obra poética completa, escassa mas fulgurante, Marmelo e Silva viria a prefaciar.
O mesmo desejo de superação e a mesma atração do longe que experimentara diante da penúria material e psicológica do Paul ou do atavismo e indigência cultural de Coimbra, explica que, como escreve Arnaldo Saraiva, nunca tenha querido aceitar “as teorias da submissão da literatura a programas ideológicos e a finalidades propagandísticas, por generosas que fossem” (p. 36). Essa independência custar-lhe-ia, como é bem sabido, muitos dissabores. Ainda a procissão ia no adro e já Marmelo e Silva tinha apercebido que a emancipação do indivíduo não passava apenas pela melhoria das suas condições materiais e sociais, mas também pelo esclarecimento e abertura da sua vida psíquica, afectiva, erótica e sexual, e que a literatura também devia, ou podia, ocupar-se do ser, e não somente do ter, ou que a gesta dos sentidos e das sensações era tão importante quanto a gesta do trabalho. Esta visão não a souberam ou não a quiseram compreender alguns companheiros de geração, que não hesitaram em manifestar-lhe reservas ideológicas, não raro em tom paternalista e azedo. A correspondência aqui reproduzida é na sua maioria de teor intelectual, como atestado pelas cartas trocadas com o amigo Fernando Namora, romancista e poeta superlativo, também ele ainda hoje alvo de preconceitos. Nestas cartas percebe-se desde logo a visão pessimista do panorama editorial: “só vejo marasmo, penúria, e até pânico!”, escreve Namora; e Carlos de Oliveira ironiza com o país “de génios em 400 páginas pelo menos, e quanto mais confusas melhor” (p. 41). Sarcasmos à parte, a verdade é que Marmelo e Silva nunca encontrou escancaradas as portas das editoras, como deveria ter acontecido em conformidade com o seu talento, e numa carta de 1960, José Saramago, em tom familiar, manifesta inquietação não só pela ausência prolongada de notícias como pela “hibernação” do escritor Marmelo e Silva, ao mesmo tempo que informa ter a Censura inviabilizado uma eventual reedição de Sedução… Pela nota introdutória ao “Quinto poema da ilha de porto santo”, publicado no suplemento literário do Diário de Notícias de 1955, vê-se que havia em relação a José Marmelo e Silva, ao cabo de 23 anos de produção literária, mesmo que escassa, uma má-consciência, senão mesmo remorso, pois aí se congratula R. A., que a assina, “de o ter trazido dos caminhos ínvios e sem perspectivas por onde vagueava”. A isto talvez José Marmelo e Silva pudesse ter respondido com dois versos do “Terceiro poema da ilha de porto santo”, publicado anos antes: “incumbe a cada um de nós um sacrifício/ sem o qual a vida nem sequer é paga” (p. 82).
Mas também há espaço para cartas de teor íntimo, como por exemplo aquela em que Augusto Abranches desabafa com Marmelo e Silva acerca de um aborto sofrido pela esposa, e, sobretudo, aquela, bem comovente, enviada de Macieira de Cambra, em 1971, ao filho Nelson. A partida do filho, escreve Marmelo e Silva, coincide com a “ideia peregrina de edificar” uma mesa tosca onde se pôs “a ordenar páginas literárias de há quase meio século” (p. 96), tendo redescoberto fotos de quando ainda tinha cabelo, e uma miscelânea de artigos e entrevistas, alguns de que já nem se lembrava. A partida de um filho, ainda que temporária, talvez signifique sempre, para um pai, uma divisão de si mesmo, a pedir, portanto, um recentramento, por via da retrospeção, e parece ter devolvido Marmelo e Silva a um passado suspenso ou interrompido.
Cabe dizer algo, aqui, sobre a opção de Arnaldo Saraiva no que toca à reprodução das diversas epístolas: nem as transcreve, nem as descreve através de legendas. Ao deixar falar a caligrafia, Arnaldo Saraiva dá-nos uma época em cru. O leitor acede a um simulacro do que seria ler as cartas acabadas de tirar do envelope, e participa, assim, da descoberta do seu conteúdo.
Vemos, na p. 46, várias capas de edições de Sedução, desde o papel de sebenta da primeira edição à capa texturada da edição mais recente. As soluções gráficas e as imagens escolhidas testemunham bem o evoluir do livro enquanto objeto gráfico, mas também refletem a dificuldade em fazer jus a um texto tão audacioso para o seu tempo: das borboletas infantis que brotam da palma de uma mão na edição da Portugália, à androginia dúplice da capa da Campo das Letras. Da singeleza inicial à ambiguidade tardia, passando pela capa provocadora, para não dizer subversiva, da Ulisseia, e pelo kitsch da edição da Caminho.
A experiência militar em Mafra surge ilustrada por uma série de fotografias, mas a mais curiosa dessa época é sem dúvida aquela que mostra José Marmelo e Silva deitado de costas com indumentária militar completa, num campo de treino de Mafra, porque nos revela o seu sentido de humor. Marmelo e Silva faz acompanhá-la da legenda “apontamentos casuais: alferes dormindo”, e descreve-se aí como “um militar pacifista” (p. 59), e, de facto, tanto poderia estar assim, de farda, capacete, pistola e demais apetrechos bélicos, deitado de costas num terreno do quartel, como nas margens da ribeira de Paul, aconchegando os olhos no céu serrano, ou nas areias frias das praias de Espinho.
Quando o roteiro fotobiográfico, depois de uma passagem por Aveiro, chega a Espinho, impõe-se-nos, cheio de vida e brilho, o rosto de Marcolina de Oliveira Gomes, futura esposa de José Marmelo e Silva, cujo sorriso inteiro e bondoso contrasta de algum modo com o aspecto sofisticado, e impecável, que o escritor apresenta numa fotografia da época, dir-se-ia prestes a sair para uma festa glamorosa que tivesse lugar em The Great Gatsby de F. Scott Fitzgerald.
A condição de oficial do exército em Aveiro é articulada com excertos de Anquilose e Desnudez uivante, e passamos depois às vistas da Madeira e da cidade do Funchal – terra de “singularidade tropical” e “precariedade uivante” –, onde Marmelo e Silva, que para aí fora destacado como Alferes miliciano, se mantém por alguns anos ligado ao ensino, já desvinculado da vida militar, até sermos reconduzidos a Espinho, que, apesar da pacatez de que nos fala Arnaldo Saraiva, lá se exercitava em fazer as vezes de uma mini-riviera do Norte de Portugal, em torno da praia de águas frias e agitadas, do golfe, do Cine Clube, e, sobretudo, do Casino. Em Espinho passará José Marmelo e Silva a segunda metade da vida, e aí nascerão os seus dois filhos, em 1948 e 1949, Nelson, futuro médico, e José Emílio-Nelson, futuro poeta. Mas, numa fase da vida que já pedia assento, viu-se ainda obrigado à condição de saltimbanco a que parecem condenados, então como hoje, os professores deste país, entre Tavira, Olhão, Caldas da Rainha e Oliveira de Azeméis.
Na p. 91, a dois terços do livro, deparamo-nos com uma fotografia que provoca estranhamento pela desconexão entre o fundo vegetal e agrícola, algo desordenado, atravessado de um muro tosco, e o primeiro plano onde nos aparece, de fato e gravata, o filólogo clássico e criador de obras-primas romanescas, de olhos escondidos pela sombra que neles projectam os óculos de massa escura. Mas se esta fotografia pode ser, como escreve Arnaldo Saraiva, a última que se conhece do autor de Sedução, sentimo-nos tentados a ligá-la à imagem que inaugura a fotobiografia, a do rio da vida, com seu valor genésico, que é também de energia continuadora. Aquela era, no entanto, movimento, fluidez, abertura, esta é fechamento: desde logo pelo muro que cinta Marmelo e Silva, e pela massa vegetal que não deixa ver céu ou montanhas, mas também porque o escritor ocupa o primeiro plano, de fato preto, situado ao centro, justamente onde antes corriam as águas: “o meu deslumbramento”, lê-se num excerto de Anquilose, aqui reproduzido, “só pode compreendê-lo quem como eu provier do rude e faminto mundo rural”, informa o narrador, descrevendo as emoções nele provocadas pelo cenário litoral e urbanizado da região de Aveiro (p. 71). Esse mundo rural nunca se desvaneceu do pensamento de Marmelo e Silva, que em 1954 adquire uma casa e um terreno agrícola em Macieira de Cambra. Dizia eu do desfasamento entre o escritor e filólogo clássico e o cenário do quintal. Não é bem assim: uma rica tradição que começa em Hesíodo e passa, entre nós, por Alexandre Herculano, de retiro buscado na natureza, legitima essa fotografia. Esse retiro, os sábios e poetas latinos diziam-no regressus: não é só retiro, mas também, como o nome indica, regresso às origens ou a uma ideia de origem. Ora, da cultura latina Marmelo e Silva sabia como poucos, ele que até elaborara uma tese de licenciatura sobre a poesia épica de Virgílio com o título Um sonho de paz milenária. O filho José Emílio corrobora, em depoimento recolhido por Arnaldo Saraiva, esta visão do escritor agricultor: do pai como um esteta no meio das vinhas, forçando metamorfoses em árvores “ovídias”, capaz de cultivar a terra com a mesma precisão com que cultivava as letras, a lembrar, aliás, um poema de Eugénio de Andrade, “Arte dos versos”. Não por acaso, encontramos escritos numa agenda, com data de 1980, os seguintes versos:
Dirão e bem:
em vez de livros, escreveu árvores de fruto.
Em vez da mão sobre o papel, o percurso da água nas raízes da vida.
Aromas dos ramos que se ajoelham… Tudo é poesia.

E depois, anota: “chegado a Espinho, reli e… - Oh, diabo, isto é um epitáfio! Figas, canhoto!” (p. 93).

Alguma tinta académica tem corrido sobre o alinhamento geracional de José Marmelo e Silva: se presencista ou neo-realista, se nem uma coisa nem outra, se ambas. Questões de somenos. José Marmelo e Silva escolheu desocupar-se da “vida literária” e considerou-se escritor humanista, e isso basta. Quis merecer, pela escrita, a sua dignidade humana, e mereceu-a. Fez o seu caminho de forma íntegra, sem cedências, ao arrepio da normalidade literata, enfrentou censuras e rasuras, preconceitos, juízos duvidosos, esquecimentos, mas o caminho que fez trouxe-o intacto até nós, e esta fotobiografia dá-nos dele uma figura humana – de pai, marido, beirão, seminarista, universitário, professor, militar, escritor e agricultor – intacta.

RUI LAGE


 

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